sábado, 8 de maio de 2021

Quem apanha lembra - Diário do repórter #1

Juro dizer a verdade, nada além da verdade. 

Porque palavra de repórter tem vínculo com a realidade e o veredito do público certifica o que é narrado. Quem lê, ouve ou vê aquilo que o jornalista conta deve encontrar certeza em suas palavras, jamais engano, nunca trapaça. A verdade, sendo o que ela é, adequação entre o que se diz do fato e o que o fato é, de fato, é o que esse repórter pode entregar de certo e justo a quem com ele participa da pequena e da grande história, da história comum de personagens anônimos que refletem seu tempo, da história tradicional, que tem em nomes célebres e ações de impacto social o documento de suas épocas. 


Desse modo, me comprometo a contar a partir de hoje algumas histórias de quando fui repórter e editor. Para deleite meu com minhas memórias, para a curiosidade de outros. Para o registro do que vi e vivi como jornalista em um dos principais grupos de mídia do Rio Grande do Sul. 

EMPURRÕES E COTOVELADAS

Quase não respirei por alguns segundos. 

O ar sumiu e com ele minha voz. 

Uma cotovelada atingiu minhas costelas, bem do lado direito. Veio junto a empurrões. O grupo era grande e nele estavam jornalistas locais da região da serra e eu entre eles. Repórter e apresentador da RBSTV em Bento Gonçalves, eu tinha a tarefa de conseguir sem falta a entrevista com o governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra (PT) sobre os motivos da Ford e o estado terem rompido o acordo que traria a montadora de veículos para a cidade de Guaíba, na Grande Porto Alegre. 

E lá estava eu. Sem fôlego e sem palavras, tendo que tirar do governador as palavras que muitos, no Rio Grande e no Brasil, queriam saber. 

A cotovelada?

Bem, foi uma gentileza de um dos seguranças de Olívio. 

A assessoria do governador havia confirmado que ele falaria com a mídia assim que visitasse os pavilhões da Expobento, a maior feira de negócios da região. Porque desde a chegada dele a Bento Gonçalves, nós, jornalistas, havíamos cercado o governador e eu, especialmente instruído por Porto Alegre a obter sem desculpas a entrevista sobre a Ford. 

A palavra mágica do editor para saber que não poderia falhar era "a Globo queria." Essa era a senha para que eu desse tudo, mesmo o corpo às cotoveladas, para tirar do chefe do executivo gaúcho uma explicação sobre a rescisão com a Ford. Sendo a RBSTV uma afiliada da Globo, tínhamos que atender às exigências da emissora do Rio de Janeiro. Principalmente quando quem pautava era o Jornal Nacional.

Voltando à cena, Olívio havia chegado a Bento Gonçalves no meio da tarde. Vinha de Porto Alegre onde no final da manhã tinha estourado a bomba da saída da Ford do estado e com ela a perda esperada em investimentos. O governador, desde o momento do anúncio, não tinha falado com os veículos. Após o almoço, fora para a serra para cumprir agenda na Expobento. A exigência então era que eu conseguisse aquela que seria a primeira entrevista de Olívio para falar do fim da Ford em solo gaúcho. 

Na chegada a assessoria fez o acordo de colocá-lo à disposição de rádios e jornais locais no fim da visita. Eles queriam declarações de interesse para a economia regional. Nós, eu e o cinegrafista, queríamos a tal declaração que "a Globo queria." Combinei com o cinegrafista que ele mantivesse gravando o tempo todo e que o microfone ambiental estivesse sempre aberto para pegar tudo o que o governador pudesse falar. Vai que ele fala da Ford com alguém... 

E assim foi a visita até que, chegando perto da saída dos pavilhões, imaginando que a comitiva pararia para uma coletiva, todos aceleraram. Olívio foi isolado pelos seguranças e estava sendo levado para fora em direção ao carro oficial. 

Quando percebi isso, já com o microfone ligado, comecei a gritar: 

"Governador! Governador! Por que a Ford foi embora?!" 

Gritar mesmo, para ele e todo mundo ouvir que esse era o assunto do qual teria que tratar e sair sem dizer nada sobre o fato não estava nos planos desse repórter. Nesse momento, formando já um tumulto, foi que veio a cotovelava do segurança. Sem fôlego, não consegui gritar. 

Nisso, um repórter da rádio Semanário que estava ao vivo pelo telefone começou a narrar o que estava ocorrendo. Do meu lado, ele viu a cotovelada, o empurrão que ainda levei para desequilibrar e a situação formada. O repórter da rádio também elevou a voz e todos ouviram que ele dizia ao vivo "os seguranças do governador estão agredindo o repórter da TV". 

Aí, a maré mudou e também o ânimo. 

Olívio, que seguia no meio dos seguranças, olhou para nós e resolveu parar. 

Resolveu também falar. 

Assim, gravamos com ele o que precisávamos. 

Corremos para a emissora, geramos o material para Porto Alegre, que era assim que se fazia antes dos envios de arquivos pela internet. 

Minha entrevista entrou no telejornal local e também no Jornal Nacional na reportagem sobre o caso, além de estar em outras edições. 

Afinal, aquela entrevista "a Globo queria."  

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O ex-governador Olívio Dutra não teve nada a ver com a ação do segurança, isolada e violenta. Muitos anos depois encontrei o mesmo agente fazendo a vigilância do estúdio móvel da emissora na Feira do Livro em Porto Alegre quando lá estive para transmitir ao vivo parte do evento durante um telejornal. Na ocasião ele fazia a segurança para mim. Nada falei, nem ele. E sei lá se ele me reconheceu. 

Quem apanha sempre lembra, já quem bate... 

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Em breve, uma nova história do Diário do Repórter.

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O desfecho da saída da Ford do Rio Grande do Sul até o pagamento de indenização da empresa ao estado você pode ler aqui

Nesse ano a montadora encerrou a produção de veículos no Brasil

 

Ilustração: Rio Brilhante

Blog não monetizado. As citações de empresas não revertem qualquer lucro e fazem apenas do registro das memórias. 


Felicidade tóxica