domingo, 12 de novembro de 2023

Felicidade tóxica

O prazer nos move. 

Você acha que não? 

Pense melhor... A felicidade, se ela existe, é um tipo de prazer especial que se procura alcançar prolongando o quê? Prazeres! 

Para Epicuro (341 - 270 a.C) a chave da felicidade é evitar a dor. Dor, assim como o prazer, são sensações e ambos produzem tristeza e sofrimento, alegria e regozijo. Sua filosofia é o hedonismo ou a doutrina do prazer. 

Fugir da dor, sempre foi uma meta. 

Contudo, é possível? 

Uma legião de influenciadores ganha hoje a vida difundindo a ideia de que cada pessoa é um potencial inesgotável de força, resiliência, reinvenção e tudo mais que faz do sujeito um super-humano. 

Vendem cursos, publicam conteúdo e prometem o máximo: performance e excelência na vida pessoal e na carreira profissional. 

Se você não consegue, o problema é seu que não deu tudo de si. 

Isso gera frustração acumulada porque, além de se sentir triste, a pessoa acaba se considerando incapaz. 

Os coaches desprezam o elementar: a vida não é assim. 

Seriam eles uma classe de sofistas? 

Vender a solução da vida negando a vida é uma contradição. 

Dores e tristezas não são elimináveis. 

"TRISTEZA - Um dos afetos fundamentais: o contrário da alegria, tão difícil de definir. É como um sofrimento, mas que seria da alma." André Comte-Sponville, filósofo. 

Fundamental. A tristeza é um afeto, quer dizer, uma emoção. Algo que temos em nós de elementar, de radical, básico, natural. 

Negar a tristeza é negar a si mesmo. 

A autonegação é uma mutilação. Uma mutilação da alma. Mutilação de algo que está no fundamento do nosso ser. 

Se a tristeza ensina, quem a nega se priva de aprender valiosas lições. Uma delas e talvez a maior, é que ninguém é alegre nem feliz todo o tempo. Isso nos iguala e desmascara vidas perfeitas como aplicações de fórmulas que se treina para atingir performances de excelência. 

Todo mundo tem dias bons, dias ruins. 

Potência em alta, potência em baixa, na linguagem de Spinoza. 

Esse esforço contínuo para não sofrer tristezas e delas fugir sem trégua já não é em si um tipo de sofrimento? 

Um budista pensaria que desejar não sofrer já é estar sofrendo. 

Marco Aurélio, imperador romano e filósofo estoico, diz assim: "Lembra-te, por outro lado, em toda a circunstância que te produza dor, desta máxima: não é desgraça, mas fortuna suportá-la nobremente." 

Enfrentar as dores, as tristezas, os sofrimentos de frente, com nobreza, é o privilégio dos fortes. 

Por quê? 

"Da escola de guerra da vida - O que não me mata me torna mais forte." Nietzsche. 


Imagens: internet

      

sábado, 5 de novembro de 2022

Sempre vencerá

A democracia vence.

Vencerá sempre. A certeza disso pode estar alicerçada em diferentes bases teóricas e práticas e em todas elas há a expressão de uma necessidade: a da liberdade individual e dos povos.
Hegel, em sua filosofia, afirma que a consciência da liberdade é para o ser humano o despertar de uma ideia, daquilo que ele chama espírito. Esse despertar é progressivo e significa uma marcha histórica que vai da liberdade de um, com os reinos, a liberdade de alguns, com as aristocracias até a liberdade de todos, com as repúblicas.
A democracia, portanto, é um fato histórico em evolução que apela ao homem em sua consciência de liberdade e que só é possível, diz Hegel, dentro do Estado, onde a ética e as leis são a expressão objetiva da liberdade de todos uma vez que todos as seguem ou devem seguir.
Por mais que haja conflitos, eles são enfrentamentos de forças antagônicas, o choque dialético, dos quais surge um estágio mais alto da liberdade. "Estabelecemos a consciência da liberdade do Espírito e, com isso, a realização dessa Liberdade como objetivo final do mundo." Hegel, A Razão na História.
Retrocessos são temporários.
As caducas ideias autoritárias estão sendo derrotadas no Brasil pela força democrática de um Estado Democrático de Direito e de seu povo que sente e quer ser livre como Estado e sociedade.

Dessa luta histórica surge em síntese um Brasil mais maduro e politizado. Mais consciente de sua liberdade e seus limites. Um país mais seguro de si mesmo e de sua trajetória no tempo.
Um país reconciliado consigo e pronto para novas lutas em defesa da sua essência democrática, destino seu e do mundo.

Faz o L de Liberdade, Brasil!

Imagem: Uol

sábado, 15 de outubro de 2022

Esquecido e inutilizado coração

Nas aulas de filosofia da arte, conheci Rousseau. 

Eram tardes em uma sala da faculdade de arquitetura da federal do Rio Grande do Sul. Alunos da filosofia, mas não somente dela, aprendiam sobre estética e a relacionavam com o homem em sua integral existência: a ética, a política, a religião, a economia, o trabalho... o útil e o inútil, sendo este mais importante que aquele quando se reflete sobre o real sentido das coisas, segundo Heidegger. 

Com Rousseau, aprendemos a ver mais de perto a alma humana ou aquilo que a ela equivalha. Reflexões tão úteis quanto inúteis se o objetivo é encontrar sentido naquilo que se ensina ou se aprende na educação dirigida ao mundo que valoriza o domínio, a força, a competição, conquista, a vitória, o mérito... o individualismo, o hedonismo como desfrute dos mais capazes. 

Nesse dia do professor, uma página de Rousseau para pensar na seguinte questão: 

o que se quer quando se educa alguém?

"Sempre verifiquei que os jovens corrompidos cedo, e entregues às mulheres e ao deboche, eram inumanos cruéis; a fuga do temperamento tornava-os impacientes, vindicativos, furiosos; sua imaginação, tomada por um só objeto, recusava-se ao resto; não conheciam nem piedade nem misericórdia; teriam sacrificado pai, mãe e o universo inteiro ao menor de seus prazeres. 

Ao contrário, um jovem educado dentro de uma simplicidade feliz é levado pelos primeiros movimentos da natureza às paixões ternas e afetuosas. Seu coração compadecente comove-se com as atribulações de seus semelhantes; ele freme de alegria quando revê seu camarada, seus braços sabem encontrar amplexos carinhosos, seus olhos sabem verter lágrimas de ternura; ele é sensível à vergonha de desagradar, ao remorso de ter ofendido. Se o ardor de sangue que o inflama o torna vivo, exaltado, colérico, vê-se no momento seguinte toda a bondade de seu coração na efusão de seu arrependimento; ele chora, geme por causa do ferimento feito; quisera à custa de seu sangue resgatar resgatar o que verteu; toda a sua exaltação se extingue, todo o seu orgulho se humilha diante do sentimento de sua falta. 

Foi ele próprio ofendido? 

No ápice de seu furor uma desculpa, uma palavra o desarma; perdoa os erros dos outros da mesma maneira que corrige os seus. A adolescência não é a idade nem da vingança nem do ódio; é a da comiseração, da clemência, da generosidade. Sim, sustento-o e não temo ser desmentido pela experiência, um menino que não é mal nascido e que conservou até vinte anos sua inocência, é nessa idade o mais generoso, o melhor, o mais amante e o mais amável dos homens. Nunca vos disseram coisa semelhante, bem o creio; vossos filósofos, educados na corrupção dos colégios, não cuidam de saber disso." Emílio, p. 246. 


As contradições entre a vida e a obra de Rousseau não invalidam sua pedagogia. 


E ela nos mostra que por trás do útil para o qual muitas vezes se ensina, há um esquecido e bastante inutilizado traço humano. Sua essência mesmo, talvez, sua própria humanidade ou fundamento dessa sua condição e ser resgatada sendo reeducada.  



Um esquecido e inutilizado coração.    


Ilustração: fazendo história - wordpress

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

A pupila de Guadalupe

"Os indígenas são a pupila de Guadalupe."

Disse hoje o arcebispo de Aparecida, Dom Orlando Brandes, citando-os entre os humildes perseguidos e prediletos de um Deus ainda incompreendido pelo homem. 

Porque notícias trazem rumores de guerra. De injustiça, de expropriação. Desde a chegada dos colonizadores em terras americanas tem sido desse modo, com a bênção de própria Igreja que se corrige em parte. 

Os povos originários, legítimos ocupantes do Novo Mundo, para eles o único e ancestral, atravessam os séculos de hispanização em contínuo recalque da sua história, da sua cultura e da sua presença em sua terra. A grilagem, o garimpo, a invasão, a inculturação e mesmo a continuidade de uma política de extermínio velada na inação dos Estados, tudo isso que povoa manchetes tratadas com indiferença e certa desumanidade, é a herança presente de um passado colonial ainda vivo. 

Justifica-se, portanto, que o então Dia da Hispanidade seja hoje o Dia da Resistência Indígena. 

O 12 de outubro é data para refletir da decolonização, que é diária, e afirmar identidades nativas de todo o continente com o direito de todos à existência digna incluída definitivamente nas nações de toda a América. 

Só nesse dia, quando tudo for de todos, a visão de Guadalupe com o índio Juan presente será também a de cada um. 

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Leia mais em Brasil de Fato: Na América Latina, 12 de outubro é celebrado como Dia da Resistência Indígena 

Ilustração: Tuara Paez 

domingo, 25 de setembro de 2022

A infelicidade dos felizes

A felicidade é uma meta ideal de cada ser humano. 

Ideal porque ela existe mais como conceito e, portanto, na abstração, do que na prática. A felicidade é o que se quer, se procura, se trabalha por ela insistentemente mas, ao fim, cada pessoa conhece mais a alegria do que propriamente a felicidade. 

Buscar a felicidade impondo-se a tarefa de conquistá-la já não seria perdê-la? 

Desejar é sofrer, ensina o budismo, e o desejo de ser feliz já é o sofrimento de não ser. 

"É mais fácil alcançá-la quando se deixa de exigi-la", diz André Comte-Sponville e nisso vai um tanto da indiferença necessária a quem cultiva a paz da alma resultante da economia de vãos esforços. 

Por que há aqui uma pergunta: o que se exige quando se quer a felicidade? 

Talvez, nem se saiba muito bem sem um rigoroso exame, o que impõe a cada um refletir exaustivamente antes de sair a procurar o que faz feliz. 

É possível encontrar o que se procura sem conhecer?

O estoicismo de Sêneca e seu ideal de tranquilidade espiritual lembra exatamente isso, que "todos aspiramos à felicidade, mas, quanto a conhecer seus caminhos, tateamos como na treva" e errando o percurso, dela mais se afasta quem a procura. 

Logo, antes de sair por aí atrás da felicidade, seria preciso um tempo razoável de reflexão filosófica porque a felicidade, se é consequência da conduta, ela é efeito e não causa daquilo que se faz ao longo da vida. É porque vivo uma vida agradável que sou feliz e não o contrário. 

Haveria, então, alguma fórmula da felicidade?

Parece que não mais do que a fórmula da longevidade: você pode cuidar de si, mas, de fato, ninguém sabe quando ou do que vai morrer e todo ideal de vida longa é esperança e não certeza. Voltamos ao clássico carpe diem.  

Sem querer cultivar pessimismos e tirar de ninguém o prazer de se alegrar e se considerar feliz, o que se pretende aqui é demonstrar brevemente que o ideal de felicidade como resposta condicionada a qualquer desagrado desnaturaliza a tristeza e a dor e acaba assim impondo o fardo pesado de culpas pessoais por não conseguir ser alegre o tempo interior, como canta Wander Wildner. 

A revolta contra a felicidade total, do psicólogo David Salinas, o levou a escrever A Ditadura da Felicidade em reação à patrulha contemporânea contra a infelicidade que não deixa de ser uma estratégia do mercado para manter a força produtiva e consumidora em alta. 

"Se você se sente mal, parece que você fracassou como indivíduo", diz Salinas. 

É claro que a vida não é nada disso, mas, a insistência para que seja produz pressão, desconforto e agrava a infelicidade dos que se acreditam felizes.


Leia mais em: O que é a ditadura da felicidade e como podemos escapar dela


Imagem: Holos

Irrita-me

Felizes os infelizes que o sabem ser sem iludirem-se que não o são. 

"Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes." 


Fernando Pessoa
O Livro do Desassossego, Bernardo Soares. 

Imagem: colaweb

sábado, 8 de maio de 2021

Quem apanha lembra - Diário do repórter #1

Juro dizer a verdade, nada além da verdade. 

Porque palavra de repórter tem vínculo com a realidade e o veredito do público certifica o que é narrado. Quem lê, ouve ou vê aquilo que o jornalista conta deve encontrar certeza em suas palavras, jamais engano, nunca trapaça. A verdade, sendo o que ela é, adequação entre o que se diz do fato e o que o fato é, de fato, é o que esse repórter pode entregar de certo e justo a quem com ele participa da pequena e da grande história, da história comum de personagens anônimos que refletem seu tempo, da história tradicional, que tem em nomes célebres e ações de impacto social o documento de suas épocas. 


Desse modo, me comprometo a contar a partir de hoje algumas histórias de quando fui repórter e editor. Para deleite meu com minhas memórias, para a curiosidade de outros. Para o registro do que vi e vivi como jornalista em um dos principais grupos de mídia do Rio Grande do Sul. 

EMPURRÕES E COTOVELADAS

Quase não respirei por alguns segundos. 

O ar sumiu e com ele minha voz. 

Uma cotovelada atingiu minhas costelas, bem do lado direito. Veio junto a empurrões. O grupo era grande e nele estavam jornalistas locais da região da serra e eu entre eles. Repórter e apresentador da RBSTV em Bento Gonçalves, eu tinha a tarefa de conseguir sem falta a entrevista com o governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra (PT) sobre os motivos da Ford e o estado terem rompido o acordo que traria a montadora de veículos para a cidade de Guaíba, na Grande Porto Alegre. 

E lá estava eu. Sem fôlego e sem palavras, tendo que tirar do governador as palavras que muitos, no Rio Grande e no Brasil, queriam saber. 

A cotovelada?

Bem, foi uma gentileza de um dos seguranças de Olívio. 

A assessoria do governador havia confirmado que ele falaria com a mídia assim que visitasse os pavilhões da Expobento, a maior feira de negócios da região. Porque desde a chegada dele a Bento Gonçalves, nós, jornalistas, havíamos cercado o governador e eu, especialmente instruído por Porto Alegre a obter sem desculpas a entrevista sobre a Ford. 

A palavra mágica do editor para saber que não poderia falhar era "a Globo queria." Essa era a senha para que eu desse tudo, mesmo o corpo às cotoveladas, para tirar do chefe do executivo gaúcho uma explicação sobre a rescisão com a Ford. Sendo a RBSTV uma afiliada da Globo, tínhamos que atender às exigências da emissora do Rio de Janeiro. Principalmente quando quem pautava era o Jornal Nacional.

Voltando à cena, Olívio havia chegado a Bento Gonçalves no meio da tarde. Vinha de Porto Alegre onde no final da manhã tinha estourado a bomba da saída da Ford do estado e com ela a perda esperada em investimentos. O governador, desde o momento do anúncio, não tinha falado com os veículos. Após o almoço, fora para a serra para cumprir agenda na Expobento. A exigência então era que eu conseguisse aquela que seria a primeira entrevista de Olívio para falar do fim da Ford em solo gaúcho. 

Na chegada a assessoria fez o acordo de colocá-lo à disposição de rádios e jornais locais no fim da visita. Eles queriam declarações de interesse para a economia regional. Nós, eu e o cinegrafista, queríamos a tal declaração que "a Globo queria." Combinei com o cinegrafista que ele mantivesse gravando o tempo todo e que o microfone ambiental estivesse sempre aberto para pegar tudo o que o governador pudesse falar. Vai que ele fala da Ford com alguém... 

E assim foi a visita até que, chegando perto da saída dos pavilhões, imaginando que a comitiva pararia para uma coletiva, todos aceleraram. Olívio foi isolado pelos seguranças e estava sendo levado para fora em direção ao carro oficial. 

Quando percebi isso, já com o microfone ligado, comecei a gritar: 

"Governador! Governador! Por que a Ford foi embora?!" 

Gritar mesmo, para ele e todo mundo ouvir que esse era o assunto do qual teria que tratar e sair sem dizer nada sobre o fato não estava nos planos desse repórter. Nesse momento, formando já um tumulto, foi que veio a cotovelava do segurança. Sem fôlego, não consegui gritar. 

Nisso, um repórter da rádio Semanário que estava ao vivo pelo telefone começou a narrar o que estava ocorrendo. Do meu lado, ele viu a cotovelada, o empurrão que ainda levei para desequilibrar e a situação formada. O repórter da rádio também elevou a voz e todos ouviram que ele dizia ao vivo "os seguranças do governador estão agredindo o repórter da TV". 

Aí, a maré mudou e também o ânimo. 

Olívio, que seguia no meio dos seguranças, olhou para nós e resolveu parar. 

Resolveu também falar. 

Assim, gravamos com ele o que precisávamos. 

Corremos para a emissora, geramos o material para Porto Alegre, que era assim que se fazia antes dos envios de arquivos pela internet. 

Minha entrevista entrou no telejornal local e também no Jornal Nacional na reportagem sobre o caso, além de estar em outras edições. 

Afinal, aquela entrevista "a Globo queria."  

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O ex-governador Olívio Dutra não teve nada a ver com a ação do segurança, isolada e violenta. Muitos anos depois encontrei o mesmo agente fazendo a vigilância do estúdio móvel da emissora na Feira do Livro em Porto Alegre quando lá estive para transmitir ao vivo parte do evento durante um telejornal. Na ocasião ele fazia a segurança para mim. Nada falei, nem ele. E sei lá se ele me reconheceu. 

Quem apanha sempre lembra, já quem bate... 

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Em breve, uma nova história do Diário do Repórter.

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O desfecho da saída da Ford do Rio Grande do Sul até o pagamento de indenização da empresa ao estado você pode ler aqui

Nesse ano a montadora encerrou a produção de veículos no Brasil

 

Ilustração: Rio Brilhante

Blog não monetizado. As citações de empresas não revertem qualquer lucro e fazem apenas do registro das memórias. 


Felicidade tóxica