sábado, 15 de outubro de 2022

Esquecido e inutilizado coração

Nas aulas de filosofia da arte, conheci Rousseau. 

Eram tardes em uma sala da faculdade de arquitetura da federal do Rio Grande do Sul. Alunos da filosofia, mas não somente dela, aprendiam sobre estética e a relacionavam com o homem em sua integral existência: a ética, a política, a religião, a economia, o trabalho... o útil e o inútil, sendo este mais importante que aquele quando se reflete sobre o real sentido das coisas, segundo Heidegger. 

Com Rousseau, aprendemos a ver mais de perto a alma humana ou aquilo que a ela equivalha. Reflexões tão úteis quanto inúteis se o objetivo é encontrar sentido naquilo que se ensina ou se aprende na educação dirigida ao mundo que valoriza o domínio, a força, a competição, conquista, a vitória, o mérito... o individualismo, o hedonismo como desfrute dos mais capazes. 

Nesse dia do professor, uma página de Rousseau para pensar na seguinte questão: 

o que se quer quando se educa alguém?

"Sempre verifiquei que os jovens corrompidos cedo, e entregues às mulheres e ao deboche, eram inumanos cruéis; a fuga do temperamento tornava-os impacientes, vindicativos, furiosos; sua imaginação, tomada por um só objeto, recusava-se ao resto; não conheciam nem piedade nem misericórdia; teriam sacrificado pai, mãe e o universo inteiro ao menor de seus prazeres. 

Ao contrário, um jovem educado dentro de uma simplicidade feliz é levado pelos primeiros movimentos da natureza às paixões ternas e afetuosas. Seu coração compadecente comove-se com as atribulações de seus semelhantes; ele freme de alegria quando revê seu camarada, seus braços sabem encontrar amplexos carinhosos, seus olhos sabem verter lágrimas de ternura; ele é sensível à vergonha de desagradar, ao remorso de ter ofendido. Se o ardor de sangue que o inflama o torna vivo, exaltado, colérico, vê-se no momento seguinte toda a bondade de seu coração na efusão de seu arrependimento; ele chora, geme por causa do ferimento feito; quisera à custa de seu sangue resgatar resgatar o que verteu; toda a sua exaltação se extingue, todo o seu orgulho se humilha diante do sentimento de sua falta. 

Foi ele próprio ofendido? 

No ápice de seu furor uma desculpa, uma palavra o desarma; perdoa os erros dos outros da mesma maneira que corrige os seus. A adolescência não é a idade nem da vingança nem do ódio; é a da comiseração, da clemência, da generosidade. Sim, sustento-o e não temo ser desmentido pela experiência, um menino que não é mal nascido e que conservou até vinte anos sua inocência, é nessa idade o mais generoso, o melhor, o mais amante e o mais amável dos homens. Nunca vos disseram coisa semelhante, bem o creio; vossos filósofos, educados na corrupção dos colégios, não cuidam de saber disso." Emílio, p. 246. 


As contradições entre a vida e a obra de Rousseau não invalidam sua pedagogia. 


E ela nos mostra que por trás do útil para o qual muitas vezes se ensina, há um esquecido e bastante inutilizado traço humano. Sua essência mesmo, talvez, sua própria humanidade ou fundamento dessa sua condição e ser resgatada sendo reeducada.  



Um esquecido e inutilizado coração.    


Ilustração: fazendo história - wordpress

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

A pupila de Guadalupe

"Os indígenas são a pupila de Guadalupe."

Disse hoje o arcebispo de Aparecida, Dom Orlando Brandes, citando-os entre os humildes perseguidos e prediletos de um Deus ainda incompreendido pelo homem. 

Porque notícias trazem rumores de guerra. De injustiça, de expropriação. Desde a chegada dos colonizadores em terras americanas tem sido desse modo, com a bênção de própria Igreja que se corrige em parte. 

Os povos originários, legítimos ocupantes do Novo Mundo, para eles o único e ancestral, atravessam os séculos de hispanização em contínuo recalque da sua história, da sua cultura e da sua presença em sua terra. A grilagem, o garimpo, a invasão, a inculturação e mesmo a continuidade de uma política de extermínio velada na inação dos Estados, tudo isso que povoa manchetes tratadas com indiferença e certa desumanidade, é a herança presente de um passado colonial ainda vivo. 

Justifica-se, portanto, que o então Dia da Hispanidade seja hoje o Dia da Resistência Indígena. 

O 12 de outubro é data para refletir da decolonização, que é diária, e afirmar identidades nativas de todo o continente com o direito de todos à existência digna incluída definitivamente nas nações de toda a América. 

Só nesse dia, quando tudo for de todos, a visão de Guadalupe com o índio Juan presente será também a de cada um. 

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Leia mais em Brasil de Fato: Na América Latina, 12 de outubro é celebrado como Dia da Resistência Indígena 

Ilustração: Tuara Paez 

Felicidade tóxica