quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O santo sem alma

 Lembro até hoje o dia em que uma senhora que trabalhava num centro espírita me orientou sobre uma questão pessoal. 

O fato se tornou marcante por dois motivos. 

Consegui o que pretendia e aquele a quem ela me sugeriu recorrer pedindo ajuda era Che Guevara. 

Isso faz muitos anos e na época eu era um adolescente aflito que compartilhava com uma senhora amiga uma aflição própria da idade e ela me deu um conselho. 

Já conhecia quem havia sido o Che, mas não o suficiente como conheço hoje. 

Por que o fato marcou? 

Porque rezar para Che Guevara era uma contradição.

Mesmo assim, na dúvida resolvi recorrer a ele como quem pensa num amigo mais velho e, com já disse acima, o problema se resolveu. 

SEM ALMA

Como seria rezar para um santo sem alma?

Ou para uma alma que não existe senão como uma entidade imaginada? 

Ernesto Guevara de La Serna era médico e até onde se sabe de sua vida pessoal, não era religioso ou espiritualista. Che era ateu e materialista, o que o torna um monofisista, quer dizer, que concebe a existência como fenômeno físico sem duplicá-lo. 

O ser humano é uma entidade simples, um corpo e não uma entidade composta, dual, com corpo e alma. 

O problema é que o conhecimento humano, que também pode ser delimitado como crença epistemológica, é relativo, incompleto. 

Considerar a inexistência de algo apenas porque não foi demostrada sua existência é um sofisma comum. 

Algo que não teve sua existência demonstrada é apenas algo que não teve sua existência demonstrada. Afirmar que não existe é um exagero, paralogismo. 

E se a alma existir?

Há indícios. 

Nenhuma conclusão. 

Ainda. 

SANTO SEM ALMA

Che Guevara teria virado um santo popular ao qual pessoas recorrem e alcançam até a cura impossível para a medicina.

Seu santuário é o local onde ele foi capturado em 8 de outubro de 1967 por militares bolivianos sob supervisão da CIA, em La Higuera, Valle Grande, e depois foi executado. 

Revolucionário, Che lutou, morreu e entrou para a história. 

Pichações declaram que Che vive. 

De muitos modos. 

Poderia ser?

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LEIA MAIS:

8 DE OUTUBRO: DIA DE SANTO ERNESTO

CHE GUEVARA: EL SANTO DE VALLE GRANDE

imagens: Rede Brasil Atual, Uol

domingo, 21 de junho de 2020

Apesar da sua importância

Patrono da abolição, Luiz Gama é um dos maiores nomes da história do Brasil.

Porém, sua figura ainda não desfruta do mesmo tratamento dispensado a outros personagens que contribuíram para não somente para a causa da abolição da escravidão, como em outros episódios determinantes para a constituição do país.

Isso é assim apesar da sua importância.

"Em sua vida, Luiz Gama fora jornalista, professor, advogado, líder político, maçom, poeta, mas, principalmente, abolicionista. Era, portanto, um corpo estranho em um país de analfabetos e escravocratas em franca ebulição. Por ser autodidata, tornou-se rábula — atribuição pejorativa para um advogado legitimado pelo robusto conhecimento jurídico que podia exercer a profissão. Utilizava-se da posição na sociedade para ruir e subverter, muitas vezes por intermédio da sátira e do riso, as estruturas de poder de sua época. Como jornalista, conduzia denúncias diversas aos reclames cotidianos pelo seu viés liberal. Na área jurídica, atuava na consecução das liberdades como justiça social por alforrias e ações judiciais às centenas." Matheus Conceição, Revista Bula

Por que a história nacional o tem à margem, como tantos outros personagens negros, senão pelo racismo estrutural conservador e pela mentalidade colonialista hereditária que travam reparações sociais ao povo negro e prolonga sua invisibilidade na cultura brasileira?

O que pode mudar essa realidade?

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Lei mais: 


quinta-feira, 28 de maio de 2020

Nos bastidores da democracia

Proteger o Estado.

O serviço secreto brasileiro contemporâneo tem sua consolidação durante a ditadura militar iniciada com a deposição de João Goulart.

A agência de investigação, SNI (Serviço Nacional de Informação) foi criada em 13 de junho de 1964 pela lei federal 4.341. Era a reformulação da estrutura de informação e contra-informação organizada a partir de 1940, atividade permitida pela 2ª Seção do Estado Maior das Forças Armadas que garantia a prática de inteligência aos comandos militares, departamentos de segurança nacional e ministérios de governo. Em 06 setembro de 1946 o decreto 97.775 criava o Serviço Federal de Informações e Contra-Informações (SFICI), órgão de competência do Conselho de Segurança Nacional. O sistema informativo foi reestruturado por ordem do general e presidente da república a assumir o cargo após o golpe, Humberto Castelo Branco.

Voltado à segurança interna, o SNI tinha por função abastecer o governo de dados que garantissem o conhecimento do cotidiano político brasileiro em contextos estratégicos para reprimir organizações, pessoas e ações consideradas potencialmente ameaçadoras ao regime.

Perseguições, prisões, tortura, desaparecimentos, mortes e atividades terroristas estiveram associadas ao SNI e sua rede de agentes secretos por todo o Brasil.

O antigo SNI é hoje a ABIN.

Inteligência e estratégia são necessários a todos os estados, que possuem suas agências de espionagem.

O problema é se esse serviço for um instituto ideologicamente antidemocrático operando internamente nos bastidores da democracia.

Poderia ser foco de conspiração e sabotagem servindo a interesses contrários ao Estado Democrático de Direito?

A ascensão da direita e do fascismo no Brasil com sua narrativa anticomunista, anticorrupção e a necessidade de combater a esquerda possui alguma influência da ABIN como herança ideológica da guerra-fria, da ditadura e do SNI?
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Leia mais:

O Ministério do Silêncio ameaça a democracia - Viomundo 

Fonte: FGV
Imagem: Internet

domingo, 24 de maio de 2020

O lado esquerdo da fé

A luta de classes, conceito marxista, encontra na Teologia da Libertação sua conexão com a fé cristã.

A influência da ideologia progressista no cristianismo promoveu uma revolução que colocou internamente a Igreja Católica em ruptura: de um lado, o conservadorismo e a opção pela burguesia na direita política.

Do outro, o lado esquerdo da fé.

Na América Latina, em especial no Brasil, a cristianismo liberacionista encontrou terra fértil.

Que espaço a Teologia da Libertação ocupa hoje nas lutas sociais latino-americanas?

"A Teologia da Libertação ainda tem uma contribuição importante a fazer na reparação do destino deprimido da onda progressista na América Latina  — na recusa de um status quo consensual e inaceitável, e na militância paciente e reflexiva ao lado dos oprimidos." Hugh McDonnell

Por trás da questão está a reflexão sobre qual seria a solução viável para a concentração de renda, a centralização do poder e o etnocentrismo e os históricos problemas provocados por eles. 
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Leia em: 

O lado esquerdo da igreja - Jacobin Brasil

Imagem: Sebastião Salgado/Sindsemp-ma 

sábado, 2 de maio de 2020

Querem que eu comece?

Bastou um soco.

E alguns outros mais.

Ao reagir fisicamente a um grupo de fascistas que hostilizavam enfermeiros que faziam uma manifestação pacífica em Brasília (DF) no 1º de Maio, Sabrina Nery descarregou sentimentos de uma nação cansada de injustiças.

O gesto paradoxal de agir violentamente contra a violência é resultado de uma interlocução que abandou as palavras há muito tempo. Elas viraram um tipo de formalidade da linguagem, pois o conteúdo foi desprezado. A violência vai se tornando o bruto argumento de uma discussão feroz porque é radical.

Antes do soco, a pedrada

A reação de Sabrina faz lembrar um episódio.


Era dezembro de 1746, Gênova se encontrava ocupada pelos austríacos que, assim como os franceses, haviam invadido a Itália. Naquele dia 5, um canhão inimigo havia atolado e o comandante militar ordenou que a população ajudasse a empurrar a arma.

Não deu certo.

No meio da multidão, o menino Giovanni Battista Perasso, o Balilla, de apenas 11 anos, sentiu o sangue ferver.

O orgulho ferido e a ordem ultrajante bastaram para Balilla atirar uma pedra contra um dos soldados e gritar "Querem que eu comece?!", em genovês,
"Che l ´ inse?!"

A partir daí foram cinco dias de combates entre a população e o exército austríaco até a fuga do invasor.

Balilla se transformou em um tipo e herói das massas e sua figura é lembrada até no hino italiano:

I bimbi d´Italia
Si chiaman Balilla

As crianças da Itália
Se chamam Balilla

A história real de Perasso é controversa.
Resta o feito e o mito, a simbologia de liberdade que ele evoca.

Uma pedrada mudou a história.

Um soco para a história?

É cedo para dizer se a atitude espontânea de Sabrina Nery é potencialmente um acontecimento histórico.

Hoje é notícia pela dimensão do seu significado e isso é um indicativo de inequívoca importância.


Os socos da ciclista são nesse momento um símbolo de coragem latente de milhares de brasileiros fermentada pelo esgotamento sentido por essa parte da nação que absorve paciente a grotesca intimidação fascista que tomou espaço no país.

Os acontecimentos recentes levam os analistas a preverem um aumento de tensão entre o grupo extremista de direita pró-bolsonaro e os demais que hoje se encontram juntos na oposição democrata. Basta ver a aproximação de adversários políticos que agora pregam unidade contra o autoritarismo crescente.

Sabrina Nery pode ser um catalisador de ânimos.

Porque a pandemia vai arrefecer.

As ruas vão voltar a ser tomadas por quem hoje está isolado.

Os ressentimentos acumulados e reprimidos misturados à dor inconsolável pelas mortes de Covid-19 tratadas com a sádica indiferença do "e daí?" vão estar cara a cara com a minoria fanática e antidemocrática que hoje se sente empoderada.

Quando isso acontecer, quem dirá o
"querem que eu comece"?

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Leia mais sobre o tema em:

Um sasso contro il soldato e Balilla entra nella storia

Ato sindical de 1º de Maio une Marina, FCH, Lula e Ciro em palanque virtual  

Ciclista reage e bate em bolsonaristas que ameaçavam profissionais da saúde no Planalto  

Prepare-se para a guerra 
imagens: Pintrest e Fórum



Felicidade tóxica