quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

A indelével marca do nosso tempo

"Se Narciso está tão inquieto, é também porque nenhum discurso teórico consegue mais tranquilizá-lo." 

E quem é o Narciso assim perturbado descrito por Sébastien Charles senão o sujeito contemporâneo autoconsumido à procura do gozo ilimitado, imediato e concreto de si mesmo e para si mesmo?

Na hipermodernidade descrita por Lipovetsky, o hiperindividualismo, o excesso e a efemeridade são algumas das características da sociedade de consumo como modernidade agora consumada.

"Longe de decretar-se o óbito da modernidade, assiste-se a seu remate, concretizando-se no liberalismo globalizado, na mercantilização quase generalizada dos modos de vida, na exploração da razão instrumental até a "morte" desta, numa individualização galopante." Lipovetsky

Apenas a impermanência permanece como regra que emerge de uma ontologia: o delírio de Heráclito se concretiza.

Sob o império da inovação, tudo nasce obsoleto, consome-se veloz para ser substituído por aquilo que recém criado já vem envelhecendo.

Se o moderno é o novo desafiando o antigo e tradicional, o hipermoderno é o hipernovo desafiando a si mesmo em transformação vertiginosa.

Imersos na velocidade, teremos ainda história como narrativa de longo tempo entre as fronteiras das convencionadas idades ou os nossos registros ficarão mesmo como fragmentos múltiplos de culturas entre culturas sob o signo do imediato? 

Transforma-se também a identidade que, quanto mais se individualiza, mais se torna parecida consigo mesma apenas. Reconstrói-se nova como a juventude perpétua de Narciso, pois o que vê e procura apaixonadamente é reflexo seu e, insaciável, consome exageradamente o que lhe agrada como hiper-hedonismo querendo assim permanecer.

Para Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano contemporâneo,  (link abaixo) acrescenta que a individualização extrema não produz singularidade que multiplica a alteridade, mas significa a uniformização alienante de sujeitos dominados pela estrutura enquanto pensam que a ela dominam.

A subjetividade pós-moderna está enclausurada em si mesma, idiotizada e cada um acredita realizar o diferente quando o que faz é reproduzir o igual em um sistema consumista heterônomo que cria a falsa sensação da autonomia e da originalidade.

Esse sujeito angustiado, não necessariamente consciente disso, e carente de prazer pessoal consome-se aceleradamente sem se realizar, pois a meta é avançar em direção ao exagero jamais satisfeito.

Estaria aqui a indelével marca do nosso tempo?

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Leia mais:

Os Tempos Hipermodernos - Gilles Lipovetsky; Sébastien Charles

Byung-Chul Han: "Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização" - El País 

imagens: pinterest

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Aposentadoria: uma medida marxista para deter o marxismo

Marx não acreditava no socialismo jurídico conservador e burguês.

A classe burguesa concede direitos ao trabalhador por meio de leis como forma de manter o sistema capitalista onde é a burguesia quem controla a economia e a política.

"Uma parte da burguesia pretende compensar injustiças sociais, para assegurar a continuidade da sociedade burguesa." Karl Marx, O manifesto comunista.

Acabar com a exploração do trabalho, para Marx, significa implantar o socialismo até atingir o comunismo pela única via efetiva: a revolução, ou seja, a inversão das forças.

"Os comunistas desdenham ocultar suas opiniões e metas. Abertamente, declaram que seus fins só podem ser atingidos pela derrubada violenta de todas as condições sociais existentes." O manifesto comunista.

Porque o trabalho é o fundamento da apropriação.
O resultado do trabalho é propriedade do trabalhador, do qual ele é expropriado no capitalismo.

Estar inconsciente desse direito é estar alienado.

O poder que muda a história é concreto, material e não ideal, por isso a revolução.

Pois, no contexto do avanço da Revolução Industrial e das revoltas operárias da Europa do século XIX, o sistema moderno de aposentadoria foi criado para esvaziar os movimentos sociais proletários.

Otto von Bismarck, enquanto chanceler, recomendou ao rei da Prússia e imperador Alemão, Guilherme I, que instituísse um sistema de pagamentos estatais às pessoas com idade acima de 70 anos.

Bismarck era conservador e oligarca.

Tomou a medida para proteger a nobreza e os empresários alemães.

Para deter o marxismo revolucionário, adotou juridicamente uma reivindicação marxista: deu direito de aposentadoria ao trabalhador.

Mas, a exploração segue longe de acabar.

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Leia:

Da Alemanha ao Chile: a história da aposentadoria em diferentes países


quinta-feira, 11 de julho de 2019

Uma chama de sensatez na escuridão do espetáculo


"A especialização das imagens do mundo acaba numa imagem autonomizada, onde o mentiroso mente a si próprio. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo." Guy Debord, A sociedade do espetáculo.

A televisão é tecnologia do moderno espetáculo. O espetáculo está na lógica das sociedades modernas que tudo convertem em simulação, propaganda e mercadoria.

A primeira e maior vítima a ser lastimada é a verdade.

Pois, na narrativa televisiva, não está a realidade, mas um recorte que tende sempre ao desconexo, uma farsa em si mesma porque é representação e intencionalidade, nunca o fato em toda a sua dimensão e concretude.

O espetáculo televisivo, enquanto se vende, mente para si mesmo e para quem nele acredita e o consome.

Ao se despedir do jornalista Paulo Henrique Amorim, morto aos 77 anos, o também jornalista e sociólogo Laurindo Lalo Leal Filho o faz apresentando uma crítica contundente à mídia televisiva brasileira. 


O desaparecimento de Paulo Henrique Amorim é o apagar de uma chama de sensatez na escuridão do espetáculo bizarro servido à massa imbecilizada do país.


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Leia:

Paulo Henrique Amorim, a televisão brasileira e suas mortes

domingo, 30 de junho de 2019

O pai da delação

O uso de violência física ou psicológica para obter informação em investigação criminal caracteriza tortura.

É o que diz a lei 9455/97.

A partir das denúncias de abusos da Operação Lava-Jato, suspeita-se que o depoimento de Léo Pinheiro teria sido obtido por meio de prática ilegal e direcionado com o objetivo de consolidar as acusações contra o ex-presidente Lula, preso desde 7 de abril de 2018, condenado em duas instâncias.

A delação como instrumento jurídico é instituída pelo pacote anticorrupção sancionado pela então presidente Dilma Rousseff em 2013, o que permitiu o profundamento da Lava-Jato.

Na história do Brasil, um episódio decisivo envolvendo delação, conspiração e um projeto de independência para o país é aquele que envolve Joaquim Silvério dos Reis.

Reis protagoniza a entrega dos Inconfidentes que leva Tiradentes à forca.

Joaquim Silvério dos Reis Leiria Grutes nasceu em Monte Real, região de Leiria, em Portugal, em 1756. Já no Brasil, Joaquim alcançou o posto de coronel de Cavalaria em Borda do Campo, em Minas Gerais. Além de militar, ele era também empresário da mineração.

Na época cabia à Intendência de Minas Gerais gerir os negócios da coroa na região mineradora e devido aos desvios de ouro o governo português exigia que a quinta parte do extraído das jazidas fosse entregue à Lisboa. Nas casas de fundição o metal era marcado. Mesmo assim o ouro continuava sendo desviado e como ação repressora, Portugal exigia que a quantidade fosse paga anualmente com uma tonelada e meia de ouro. Se a quantia tributada não fosse alcançada pelos mineradores, a população completaria o restante. A medida era chamada derrama e continuava sendo cobrada mesmo com a queda na exploração das minas.

A austeridade fiscal portuguesa, a pequena inversão de recursos no desenvolvimento da colônia, a restrição ao livre-pensamento e à livre-iniciativa que inibia o crescimento da burguesia local levaram à organização do movimento independentista da Inconfidência ou Conjuração Mineira.

O movimento conspirava para declarar revolta contra Portugal e tornar a colônia uma nação livre e republicana. Porém, em 11 de abril 1789, Joaquim Silvério dos Reis escreveu uma carta ao governador da capitania de Minas Gerias, o Visconde de Barbacena, contando sobre a revolta.

De início, Silvério via no movimento uma chance de livrar-se das dívidas rompendo com Portugal. No entanto, percebeu depois maior vantagem pessoal se entregasse os conspiradores.

Portugal agiu de modo implacável prendendo os conspiradores e sufocando a Conjuração. A derrama foi suspensa.

Joaquim teve as dívidas perdoadas, entre outros privilégios. Retornou a Portugal para evitar hostilidades e voltou ao Brasil em 1808, ano em que a família real mudou-se para América. Encaminhou-se para o Maranhão onde morreu em 12 de fevereiro de 1819. 

O caso transformou Silvério dos Reis no arquétipo nacional do traidor.
Joaquim Silvério dos Reis, pela venda de informação, tornou-se o pai da delação no Brasil.

A partir da acusação de Silvério, verdadeiras ou não as informações, foram constituídos processos e  condenações.

Ao ser preso e intimidado e acusar Lula em delação premiada pelo triplex do Guarujá, Léo Pinheiro foi condenado à metade da pena prevista.


Delações sempre ocorreram.

O problema não estaria em transformar a delação e sua lógica comercial em um instrumento de provas do processo penal?
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Leia:

Lava-Jato só aceitou delação da OAS quando Léo Pinheiro incriminou Lula

 Lava-Jato desconfiava de Léo Pinheiro até versão do triplex do Guarujá

Delação premiada: mercadoria do Estado pós-democrático

imagem: DM, Veja

sábado, 29 de junho de 2019

Na cadeia das razões, uma se coloca acima de todas

"A ciência do direito tem a ver com normas, portanto, com um dever-ser, e não com um ser. Se o direito por reconduzido a factos psíquicos ou sociológicos, as categorias do ser e do dever-ser, separadas por um abismo intransponível, misturam-se entre si." (ZIPPELIUS, 2012, p. 44)

Ao comentar a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, Reinhold Zippelius delimita o exercício do direito sob princípios neokantianos e aponta o dever-ser como parâmetro da ação jurídica e estabelece a norma como limite.

Na cadeia das razões, uma se coloca acima de todas como a razão máxima na execução da justiça: o dever.

Seria o dever, no âmbito do Estado Democrático de Direito, agir em conformidade com a Constituição Federal?

Toda e qualquer ação jurídica, uma vez que tenha por objetivo aplicar o direito como meio de fazer justiça, tem como dever ser fiel à lei. Motivos pessoais ou sociais não devem influenciar na ação sob pena e contaminação do processo e da decisão que necessitam ser guiados por aquilo que eles devem ser: um retrato fiel da lei.

O caso de vazamentos de informações envolvendo a operação Lava-Jato e o ministro da Justiça, Sérgio Moro, aponta para uma contaminação do processo e da sentença por não respeitar o distanciamento necessário do juiz na instrução do processo, nem a imparcialidade no julgamento.

O suposto uso deliberado nas instituições, incluindo a midiática para a manipulação da investigação e da opinião pública mostram transgressão legal e ética.

Pode um juiz ser motivado a exercer seu ofício por pragmatismo ou seja, justificar os métodos pelo resultado? Esse resultado se legitima apenas por ser de interesse público? É de interesse público que a justiça seja isenta?

Combater a corrupção justifica cometer uma fraude processual e usar práticas antiéticas?

A justiça pode ser parcial?
Quando?

Moro interferiu no processo negligenciando o limite da lei (dever-ser) por reconhecer que o resultado atenderia ao interesse público e traria vantagens pessoais (factos psíquicos ou sociológicos)?

Ou é necessário atuar no restrito limite do dever para com a lei?

Em conteúdo publicado pelo The Intercept Brasil (#VazaJato) os próprios procuradores da Lava-Jato  questionam as ações de Moro quando juiz de primeira instância em Curitiba (PR), responsável pela investigação que desvendou um esquema milionário de corrupção envolvendo os setores público e privado e partidos políticos.


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Leia:

"Moro viola sempre o sistema acusatório" - The Intercept Brasil 

imagens: The Intercept Brasil

ZIPPELIUS, Reinhold. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2012. 

quinta-feira, 30 de maio de 2019

El Cordobazo


A história da América luso-hispânica é de exploração, de miséria, de escravidão, de vergonhosas injustiças sociais que se perpetuam. 

Cenário de lutas entre interesses que vão da ambição colonialista e imperialista consolidada na mentalidade senhorial prepotente das elites locais e a rebeldia das massas empobrecidas, mas não menos colonizadas em sua identidade servil.

Hoje são cumpridos 50 anos de um dos sangrentos episódios de enfrentamento entre trabalhadores e estudantes com as forças públicas da Argentina. 

O país está parado nessa data contra o governo Macri.

Arquivo - La Nación 
El Cordobazo, como é chamado o levante de classe ocorrido em Córdoba entre 29 e 30 de maio de 1969, recorda que uma sociedade justa não se constrói sem conflito devido a constante dialética de dominação e resistência.



Nessa quinta-feira, trabalhadores da educação e estudantes estão novamente nas ruas do Brasil tentando mudar a história que vem sendo escrita por senhores prepotentes e seus asseclas servis.



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Leia para entender mais: 




Fake news é mentira?