terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O respeito à dignidade animal

O parlamento espanhol coloca em debate o reconhecimento dos animais como sujeitos.

A proposta de lei pretende elevá-los da condição de objetos para conferir a eles subjetividade fundamentada-a na vida senciente. Os animais possuem uma forma complexa de consciência e ao reconhecê-la assume-se o respeito à dignidade animal de viver uma existência coerente com sua natureza.

Para muitas pessoas isto já é um valor praticado e alguns países já estão à frente na questão. Outras sociedades possuem códigos de proteção aos animais domésticos e selvagens, porém sem a particularidade essencial de uma mudança de status ontológico dos animais.

Como o direito positivo é humano, ele incorpora na forma da lei a proteção dos animais por meio dos seus direitos convencionados pelo processo cultural. No Brasil, por exemplo, o artigo 32 da lei 9605/98 que versa sobre o meio-ambiente, proíbe o abuso, os maus-tratos, ferimentos, mutilações, práticas dolorosas ou crueis, seja para fins didáticos ou científicos injustificados com pena de até 1 ano de prisão e multa.

Mudar a condição ontológica, porém, significa que os animais deixam de ser propriedade dos donos que passam a ser entendidos como tutores dos mesmos e de seus direitos. Isto pode significar a promoção deles quando estariam eclipsados, como exigir mais liberdade para animais até então cativos por desejo dos donos. 

A Espanha avança na direção que transforma a cultura ocidental que por séculos manteve incomunicáveis humanos e animais quando a abordagem de ambos implicava em tratamento dos primeiros sobre os segundos sob o princípio da igualdade.

No que humanos e animais são iguais?

Uma das mais eloquentes vozes do campo da ética, o utilitarista australiano Peter Singer, aponta a sensação de dor e prazer, consagrada desde Epicuro na filosofia, como substrato a ser considerado quando se pensa na ação humana envolvendo os animais.

"Os animais são capazes de sentir dor. Como já vimos, não pode existir qualquer justificação moral para considerar a dor (ou o prazer) que os animais sentem como menos importante do que a mesma dor (ou prazer) sentida pelos humanos." Peter Singer, Libertação animal

Encarada como histórica no país por entidades envolvidas com o direito dos animais, e global pela consequência e repercussão, a lei prova a consciência moral no trato para com os bichos porque faz uma exigência à sociedade: um animal não mais será visto como coisa, tratado como coisa, mas como uma individualidade dotada de características tais que se respeitadas e liberadas para serem vividas, significam oportunizar ao animal uma vida feliz segundo sua natureza. 

E que natureza é esta a ser entendida sem ter que entrar em discussões metafísicas?

A de ser o animal um ser dotado de sensibilidade e alguma consciência evidente. Assim como o ser humano, o animal possui interesse inviolável inferido pelo ser humano e por ele respeitado: o de não sofrer.

"Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para recusar ter em conta esse sofrimento. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que ao seu sofrimento seja dada tanta consideração como ao sofrimento semelhante - na medida em que é possível estabelecer uma comparação aproximada - de um outro ser qualquer." Idem.  

A proposta moral e legal pretende acelerar a humanização da relação entre humanos e animais sem impor a conversão dos animais em humanos, o que seria uma aberração jurídica e dos costumes. Não é, portanto, impedir o homem de dispor dos animais, mas sim alterar a forma da relação pautando-a em valores morais os quais a lei vem resguardar o cumprimento.

Tratar as diferentes espécies e seus respectivos interesses com equivalente respeito ao dado aos interesses humanos configura a igualdade já afirmada pela ONU na Declaração Universal dos Direitos do Animais.

Por ley, en España los animales dejarían de ser considerados cosas

Por Charles Dalberto
Imagens: Current Affairs, PxHere

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Para a confirmação da História

"Naquele dia farei de Jerusalém uma pedra pesada para todos os povos; todos aqueles que a levantarem, ficarão esmagados; coligar-se-ão contra ela todos os reinos da terra. Naquele dia procurarei esmagar todas as nações que vierem contra Jerusalém." Zacarias, 12:3.9

O Estados Unidos declaram reconhecimento a Jerusalém como capital de Israel.

O anúncio, feito nesta quarta-feira (06) em Washington provocou reações em diferentes países, muitos deles, aliados norte-americanos. Nações árabes ou de maioria muçulmana condenaram a ação do presidente Donald Trump considerando a postura uma provocação ou pelo menos uma irresponsabilidade, como disseram líderes europeus.

Até então zona livre, Jerusalém é centro religioso e político para judeus, cristãos e muçulmanos sendo reivindicada em parte como território palestino.

A história de disputas por Jerusalém remonta à antiguidade e este mais recente episódio que a coloca no centro da política internacional levanta uma questão teórica sobre a historiografia: há determinismo teológico na História?

Significa perguntar e pensar aquilo que fundamenta a visão criacionista: o Deus sionista governa a História e a Bíblia, bem como a Torah, tem validade epistemológica no sentido de registar a ação divina sobre os povos, em especial o judeu, e sinalizar o curso histórico até a consumação do plano já descrito como o fim dos tempos 

Se for assim, os códigos bíblicos são uma linguagem a ser interpretada e a hermenêutica histórica bíblica sugere fatos que ocorreram ou ainda vão ocorrer.

De que dia fala o profeta Zacarias?


A farta literatura sobre o sentido da narrativa bíblica vai propor leituras que seus autores, em geral cristãos, consideram confiáveis.

Contudo, quanto são confiáveis as versões já consagradas dos eventos bíblicos diante da realidade do paradigma contemporâneo de que as verdades mais estáveis são ainda provisórias?

A metodologia empregada para fazer História parte de alguns axiomas que podem ser reduzidos a dois eixos: o materialismo e o idealismo.

A História relata a atividade humana sobre o meio e propõe para ela significados;
A História é o cumprimento de um plano ideal dirigido enquanto curso determinado ao homem.

"a Razão governa o mundo, e consequentemente, governou a sua história. Tudo o mais está subordinado, é subserviente a esta Razão universal e material são os meios para a sua realização. Além disso, a Razão tem existência histórica imanente e atinge sua perfeição nessa existência." Hegel, A Razão na História. 

A História é a realização da Razão, logos, inteligência total e Espírito que se manifesta como existência material e por meio dela se autorrealiza.


A Razão é livre por ser insubordinada a nada, a não ser a si mesma. Tentar compreendê-la é impossível para a insuficiente razão humana. O plano (télos) é realizar a liberdade a cada etapa histórica - o que é percebido pelo exame histórico do passado - de modo progressivo até a liberdade absoluta.

Que posição ocupa Israel na História se ela for assim?

Criando um paralelo entre a filosofia e a teologia, a Razão assumiria, com a devida licença hermenêutica, a função de Deus, insondável, infinita, livre e determinante dos processos históricos.

Então, Jerusalém e Israel simbolizam e mais, são partes do "material são os meios" para a confirmação da História.

Portanto, todas as motivações políticas envolvidas são componentes concretos aparentes e ativos da vontade abstrata real e essencial ontologicamente manifesta.   

"Vi a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu e junto de Deus, adornada como uma esposa ataviada para o seu esposo." Apocalipse, 21:01

A nova Jerusalém simboliza uma nova ordem global, mais livre e positiva à humanidade cumprindo inexoravelmente o determinismo histórico?

Seria possível isto sem profundos traumas?

A História dispensa estes traumas? 

Que noção de Deus cabe nesta perspectiva?

Sendo materialista a História, às ciências resta explicar a insistente coincidência, mesmo que aparente, entre os eventos e os textos sagrados.

Hamas convoca nova intifada após anúncio de Trump sobre Jerusalém; Cisjordânia já registra confrontos

Por Charles Dalberto
Imagens: Fayaz Aziz, Mussa Qawama, Mohammed Salem/Reuters; Seminar west

domingo, 26 de novembro de 2017

É preciso ser homem para libertar-se do machismo

A França lançou uma campanha nacional para mudar a cultura machista, profunda e resistente aos avanços históricos.

O projeto ataca em duas frentes: a educação e a lei. 

Seguindo estes caminhos pretende-se cercar o problema no âmbito jurídico e ético. 

Não há formas mais eficazes de alterar a mentalidade social. A conduta humana deve ser pensada no campo da filosofia prática e de seu derrame nas pedagogias junto ao aporte das ciências psicológicas e sociais. Por ouro lado, o ordenamento jurídico estabelece os parâmetros criminais vetando aquilo que a moral prescreve, por vezes proíbe, mas não pode punir. 

Políticas públicas e afirmativas são necessárias para equalizar as relações de gênero quebrando a barreira das identidades e dos papeis sem descaracterizar os sexos e suas diferenças. A promoção da igualdade significa respeito às distinções ao realizar a equivalência de oportunidades e de tratamento. 

Simone de Beauvoir
Ações deste porte e com esta intenção são libertárias.

O "eu" masculino e o "eu" feminino reconhecem-se no "outro" que é o sexo oposto, porém, sem jamais estarem reduzidos ao poder que submete, à força que nega direitos em nome de uma cultura de gênero que, se corretamente questionada, se desnaturaliza e revela-se artificial e injusta.

"Os indivíduos que se opõem às opiniões recebidas têm sido a fonte de todo o progresso, tanto moral quanto intelectual." B. Russell

Parte-se da realidade para transformar a própria realidade, o que se mostra necessidade ontológica humana: não somos os mesmos desde sempre.  

"O poder-ser é sempre um poder-ser a partir de certa facticidade, de certa situação." W. Luijpen.  

É preciso ser homem como fato para libertar-se do machismo ativo da cultura. 
É preciso ser mulher para libertar-se da passividade opressiva. 

Enquanto projeto, o ser humano é existência consciente no mundo, presente e para o qual a realidade significa. Sem ser resultado somente de forças determinantes, o ser humano é livre para escolher caminhos mais éticos e justos, portanto. 

Como sociedade que projeta seu futuro nesta direção, a França mostra-se comprometida com a história tanto do país quanto do mundo procurando alterar percursos até agora equivocados, apesar de todas as ideologias e lutas pela igualdade de gênero já produzidas.

Se ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher, como diz Simone de Beauvoir, o mesmo ocorre com o homem: ambos nascem macho e fêmea, nada mais. O modo como vão se autoconstruir reproduzindo culturas ou modificando-as, aqui no caso voltadas ao gênero, é parte do projeto pessoal e coletivo, do poder-ser, livre. 

Não há liberdade sem libertação. 

"O homem se realiza, mas isso só significa realmente alguma coisa quando o homem luta por desfazer o peso de uma facticidade que escraviza sua liberdade." Luijpen


Por Charles Dalberto
Imagens: rfi, bioblog




sábado, 25 de novembro de 2017

Ao lado de alguém

O amor é antes de tudo uma virtude.

Aquela que consuma todas as outras: quem ama não precisa da moral.

"Máxima do dever: age como se amasses." André Comte-Sponville

Contudo, o amor não é um sentimento simples, nem simples é sua compreensão e prática.

Distinguem-se três modos de amar.

A primeira forma toma o amor por paixão, pathos. O amor é eros, desejo e carência. Se não desejássemos algo, não o amaríamos. E se o temos cessando o desejo, já não o amamos mais. É preciso que haja a carência ou o temor da ausência para que se continue desejando e seduzindo astutamente para enfim possuir o amado.

Amar é também reciprocidade, encontro entre amantes. Um jeito de amar que é philia, amizade e estima. Ama-se quem corresponde e troca gentilezas, respeito, lealdade, carinho, cumplicidade. Se não há equivalência recíproca no trânsito do sentimento, há desencontro. Amar, assim, sustenta-se pelo intercâmbio fundamentado no sentir.

Ama-se ainda com total desinteresse, apenas por amar, incondicionalmente. É o amor ágape, santo pelo sua absoluta generosidade. O outro não é amado por ser importante, mas se torna importante porque é amado. Só deuses amariam assim, mas há ensaios autênticos entre humanos, como na maternidade emocionalmente sadia.

Amor na falta, egoísta.
Amor no encontro, recíproco.
Amor solitário, porém que se basta, altruísta.

Os relacionamentos misturam em medidas variáveis conforme o caráter e a situação, os três tipos abraçados pelo conceito de amor.


Na predominância de um sobre o outro é que se julga o grau de valor do amor que se está vivendo ao lado de alguém.


Cuándo vale la pena luchar por amor?

Por Charles Dalberto
Imagens: Aleteia, Mitologia e Fantasia



sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Conexão natural

"O homem de bem é um atleta que se compraz em combater nu; despreza todos os ornamentos vãos, que dificultam o emprego de suas forças e cuja maior parte só foi inventada para esconder uma deformidade qualquer." J.J. Rousseau.

Já no Discurso sobre as ciências e as artes, escrito em 1750 e que trouxe popularidade ao filósofo genebrino, ele oferecia à Academia de Dijon seu pensamento que coloca em oposição natureza e cultura, physis e nómos.

Ao demonstrar ao longo de sua obra filosófica o afastamento humano de sua essência pelos processos civilizatórios, Rousseau propõe o retorno a ela como percurso para a felicidade que passa pela superação das paixões que contradizem o fundamental: o homem é um sujeito natural, livre e solidário.

A civilização salva-se ao voltar-se à natureza.

Por Charles Dalberto
imagem: uol

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Mito ou filosofia

A filosofia nasce de uma ruptura com o mito.

Significa dizer: o mito narra origens, entre as quais, a da realidade enquanto fenômeno em sua totalidade. O mundo é criado pela conjunção de forças. Criado também é o homem.

O mito conta a história, com proposição fictícia, do momento máximo de uma gênese.
Mito grego da criação do universo. Fonte: Psicologia Profunda

Tudo o que há surge do ato criador e portanto de uma vontade potente: criar é ação voluntária de um poder divino.

Sustentar a criação é, no mito, continuidade deste processo.

Narram o mito suas testemunhas diretas ou indiretas.

O mito apela, assim, ao argumento de autoridade.

No entanto, a inconsistência da narrativa mítica vem de sua incoerência na descrição dos fatos. O mito é epistemologicamente insuficiente hoje por não limitar-se à lógica.

Já a filosofia surgiu de necessidade humana de oferecer explicações lógicas para os fatos. A realidade é o acontecimento por excelência a ser explicado com coerência, consistência, objetividade e, assim, verdade.

O que se diz, se corresponde ao estado real das coisas, é verdadeiro.

A questão centra-se na linguagem.
Fora dela não há saber. 

A filosofia, então, pretende ser a verdade pela racionalidade, o que torna seu discurso universal. Ela não depende da autoridade da testemunha, mas da validade dos argumentos e da universalidade da razão: todos podem compreender.

Deste modo, a filosofia inaugura o processo epistemológico de conhecimento da totalidade do real que leva à ciência como é conhecida hoje. A regularidade da realidade se explica melhor compreendendo suas causas fáticas, o que se expressa por leis naturais, por exemplo, na ciência, ou pela argumentação irrefutável, enquanto tal, na filosofia.

Porém, o mito, em si, pode ser descartado?

Se o que ele narra é falso do ponto de vista do discurso lógico, é também sempre
irreal quanto ao seu sentido?

Pode ser o mito uma alegoria possível para fatos que a filosofia e a ciência também tratam e investigam, mas com outros métodos e enunciam com linguagem apropriada à racionalidade e com pretensão de verdade?
 
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Por Charles Dalberto

segunda-feira, 19 de junho de 2017

A perda da palavra

Há minutos um automóvel teria avançado sobre um policial na região central de Paris.

No Reino Unido as últimas horas têm sido de tensão devido ao ataque à mesquita Finsbury Park, em Londres. Mais um episódio provável de terror em uma sequência que vem abalando a Europa e fazendo o mundo pensar a crise humanitária e a escalada de violência com raízes culturais, políticas, econômicas e religiosas.

Existe uma crise da palavra e nisto sua perda de poder criador de sentido para a realidade e a vida.

É a era das imagens e dos monólogos egocêntricos.

O terror é midiático: imagem.
O terror é monólogo: eloquência do ato não sujeito à réplica dos argumentos. 

O mundo que desaprendeu a se reconhecer está criando condições insuportáveis para o convívio.

A primeira ministra britânica, Theresa May chamou do ataque de repugnante e disse que já houve tolerância demais à violência extremista. O autor do ataque à mesquita é um radical europeu motivado por ódio aos muçulmanos.

Significa, isto, que haverá uma reação de que tipo ao terror?

São justamente as políticas globais neoliberais o fermento da massa da violência. Esta razão não se cogita alterar. Não com a profundidade necessária para esvaziar a violência de motivos políticos.

A perda da palavra agrava a situação por não oferecer uma possibilidade de tradução para a crise ou uma solução contratada para ela. Perdendo-se a palavra, interrompe-se o diálogo.

Quando todas as falas estão ocas, o resultado é o vazio, o estranhamento e a consequente selvageria.

A palavra civiliza e se o ocidente, com sua modernidade forjada nos ideais da razão iluminista, perder o poder da palavra rumará para o caminho da justiça pela força, rendendo-se à interlocução da guerra, repetindo fases obscuras da história.

Leia aqui: BBC Brasil
Foto: EPA/ Facundo Arrizabalaga

Fake news é mentira?